sábado, 28 de novembro de 2020

CRÔNICAS & ARTIGOS

 

CHOREI LARGADO  - NF  09 - 2007

                                                                                                           Neumar Monteiro

                                                                       
 

                                   Contemplar, nos dias hoje, a vista panorâmica de Bom Jesus do Itabapoana não é relembrar a mesma cidade que se conhecia na infância: as encostas, os vales e os morros que na época eram ainda desabitados, uma pureza quase impossível de recordar devido o crescimento desordenado e as construções que vemos hoje. A mera ideia de que esse paraíso perdido nos tenha legado tantas paisagens belas, que pudemos apreciar, causa-nos uma espécie de arrebatamento.

                                   Aqui, no ponto em que a melancolia se mistura ao prazer, é que percebemos as descontinuidades que só são perceptíveis para aqueles que conhecem muito bem a sua cidade: o vento que traz a chuva, o sol que prenuncia um verão muito quente e a aragem que leva embora o calor para além do Itabapoana. Do alto do morro do calvário se avista a cidade qual colcha de retalhos com suas calçadas, vielas apertadas, becos sem saída, ruas ajardinadas e o corte molhado do rio que rasga em duas cidades a continuidade do asfalto.

                                   O que procuramos descrever não é a Bom Jesus de ontem, mas as recordações que vemos refletidas, as que observamos e partilhamos em comunidade. É relembrar o antigo calvário tão pequeno de estrutura, porém rico em história, aonde se ia rezar para que caísse chuva nos meses de estio. A procissão saía piedosamente da Igreja Matriz com seus terços, andores e cantorias sacras subindo o morro em marcha compassada. Na maioria das vezes a volta da procissão acontecia debaixo de chuva. Havia ali perto uma velha senhora que cerzia meias e vendia ovos de roça, que tirava um a um de uma cesta envernizada como se joias fossem. Sob o abrigo da sua varanda esperávamos que a chuva parasse.

                                   Atualmente o calvário virou outro calvário, moderno, espaçoso, mas sem sentimento, sem história, sem o afã religioso de outros tempos. Obra moderna, sem demérito de nossa parte, mais longe de tocar as cordas sensíveis do coração. Um monumento turístico, nunca um marco de devoção - engessado às duas estruturas laterais por uma viga de concreto como dois braços imobilizados - impedidos, assim, de abençoar o povo. Pelo menos o espaço interno, encimado pela cúpula ovalada, deveria ficar à vista e não encoberto pela trave de cimento conforme ficou. A descaracterização foi totalmente inoportuna, uma mácula no típico modelo franciscano, com traços tendentes do barroco e sobrevivência, nos arcos, do renascentista.

Só na lembrança permanece a relva dançante sob o  vento; os pés de manacás, araçás, aloés e capins-cidreiras de décadas passadas. Outro tempo engolido pela modernidade, como tudo que acaba deixando um lastro de saudade.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

CRÔNICAS & ARTIGOS

 

CORAÇÃO DA CIDADE - NF  08 - 2007

                                                                                            Neumar Monteiro

                                                                        

                     A Festa de Agosto é o coração da cidade pulsando de alegria! Reencontro de emoções e um repassar do ufanismo que sempre alcança os bom-jesuenses, mesmo à distância. Festa de Agosto é o agosto agourento transformado em encanto; metamorfose da apatia em andança pela cidade, rever amigos, visitar parentes e encontrar o aconchego de ontem e de hoje.

                     É, sobretudo, relembrar um passado quando os folguedos eram outros, repletos de gincanas, disputas do Olympico e Progresso, bailes no Aero Clube, Salim Tannus declamando “Morrer Sonhando” do inesquecível Padre Mello e cantando a marcha da cidade revivendo, ano após ano, as velhas tradições.

                     Hoje a festa não é mais aquela. Também não se pode parar o tempo ou voltar atrás. A cidade caminhou para novos eventos, cresceu, modificou-se, mas o coração bom-jesuense permaneceu estagnado no amor à terrinha. Tão bom rever o sorriso daqueles que retornam! Que importante é sentir que os que ficaram não foram esquecidos. No encontro de emoções, o coração dispara e os olhos faíscam de contentamento. É um instante único, inesquecível, quando a velha guarda encontra os jovens de hoje, filhos dos filhos desta cidade querida.

                     Não há coração que aguente tanta emoção! É um reviver de assuntos e de perguntas, diálogos para saber tudo do outro como irmãos gêmeos separados pela vida. Agosto é tudo isso e muito mais, na expectativa de sairmos renovados ao ver que o outro envelheceu mais do que nós; que fulana trocou de marido e que sicrano mudou de religião. Coisas de somenos importância, mas mil vezes caras aos que não se encontram o ano inteiro.

                     São lembranças do comediante “Fernando Maia” (Alegria); da fábrica de camisa “Maril”; fábrica de balas “São Jorge”; refrigerante “Laranjinha” do Coquinho; da Escola “Pratt” de datilografia da dona Magali e dona Lili; do esmoleiro “Pernambuco”; do “Dadinho”, o homem mais alto da cidade; pensão da dona “Altiva e o hotel do Galiano Pimentel”; “Lauro Olé”; “fogueteiro Jonas”; “Garoto; Macuco; Mané Marimbondo”; “Dirceu da Mug”; os ternos requintados do “Elias Chalhoub” e do ‘seu’ “Cordeiro”; “Pedrinho Teixeira”; da alvorada da “Lyra Operária”; retretas de bandas à tardinha e shows na praça pública com artistas famosos; doces do “Erbinho e dona Custódia”; do cachorro-quente nas barraquinhas à beira-rio; “maestro Bastião”; da Orquestra do “Samuel Xavier” e tantos outros assuntos e perguntas que só a tradicional festa trazem à baila.

                        Novamente agosto. Prepare-se porque o sentimento vai falar mais alto, o peito vai inchar de orgulho e a comoção vai ser geral. Não saia de casa sem levar um lenço. Viva a Festa de Agosto! Hoje e sempre.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

CRÔNICAS & ARTIGOS

            ISTO É LÁ COM SANTO ANTONIO                                               NF  07 - 2007                                                      

                                                                                                   Neumar Monteiro

                                                                     

Deixando saudades, passou o mês de junho época das comemorações tradicionais, lendas, parlendas, novenas, histórias e cânticos dedicados ao devocionário popular cristão: Santo Antonio, São Pedro e São João. Também se abrem os corações para os pedidos de casamentos e bênçãos diversas repetindo sabedorias ancestrais que não se apagam, como acontece com a quadrilha.

A dança da quadrilha teve origem na Inglaterra por volta dos séculos XIII e XIV. A guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra serviu para promover uma transferência cultural entre esses países. A França, adotando a quadrilha, levou-a para os palácios tornando-se então uma manifestação cultural para os nobres. Depois se espalhou por toda a Europa sendo presença obrigatória nas festividades da nobreza europeia, incluindo a portuguesa, chegando a ponto de, no século XVIII, ser a grande dança protocolar de abertura dos bailes da corte.

A quadrilha chegou ao Brasil com a vinda da Corte Real portuguesa. Rapidamente caiu nas graças do nosso povo animado e festeiro. Hoje em dia possui características bem nacionais, não obstante conservando a mesma função antropológica, social e cultural de outros tempos. Variantes do mesmo tema apareceram outras, como a Quadrilha Caipira no interior do Estado do Rio e de São Paulo (e Minas Gerais); o baile Sifilítico na Bahia e Goiás; a Suruê no Brasil Central; Mana  Chica e o Fandango; Pericón no Rio Grande do Sul, e demais com a mesma marcação da quadrilha. Atualmente, ela apresenta uma mescla de português e francês, conforme expressões como “Balancê” (balancer), “Avan tu”,” Anarriér”, “Anavan” (em avant), “returnê” (returner) e “Tur” (tour). 

Um mês de festas e arrebaldes embandeirados, iguais aos de Bom Jesus de décadas passadas. Propriamente um passeio por países europeus geograficamente tão distantes - um tour cultural, com certeza! O ar cheirando a milho na brasa; as fogueiras iluminando a noite e aquecendo a melancolia das sanfonas choronas embaladas no compasso musical. Saudades do Negativo, Délio Porto, Temildo, Quininho, Didiu e Salim Tannus, e de todos aqueles que promoviam quadrilhas no antigo Aéro Clube cujos nomes se perderam no tempo. Saudades de ter parceiro para enlaçar no rodopio das quadrilhas. Dos balões, proibitivos no mundo de hoje; dos namoros esquentados pelo braseiro que assava a batata-doce; dos fogos de artifício que coloriam o céu; da calcinha de nylon e do quentão que aqueciam as madrugadas juninas; das folhas de bananeiras que escondiam os namorados, e da esperança que Santo Antonio daria um jeito no namoro complicado. Recordações...

A Prefeitura Municipal, através da Secretaria de Turismo, promoveu uma animada Festa Junina, e com muita competência o fez. Parabéns pela coerência cultural e pelo reacender da bela tradição popular. Bom Jesus reviveu suas raízes bem no coração da cidade: na tradicional Praça Governador Portela. Muito bom!

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

CRÔNICAS & ARTIGOS

 

CORRIOLA DE GARRANDÁ  - NF 06 - 2007

                                                                           Neumar Monteiro

                                                                        

 

Ah... Que perfume exalava as tardes da infância! Tempo de correr coxia e de inalar o aroma lavado que a chuva de verão espalhava pelo ar. Formigueiro cheira a pó de broca e flor da noite a jasmim, criança chega da escola e “garrandá”, conforme diziam os nossos avós. Tudo era reconhecido pelo olfato, paladar e visão. Festa Junina cheirava no ar, mesmo antes do mês de junho, como se a lembrança do ano anterior permanecesse inalterável.  Depois, perdidos os anseios juvenis, já não importam os gostos, cores e perfumes com que nos presenteia a vida.

Tantas recordações dos passeios, de finais de semana, que se empreendiam pelas cercanias de Bom Jesus. Grupos de jovens em bicicletas, sem lenço e sem documento, desvendando traiçoeiras trilhas que levavam às inúmeras cachoeiras que despencavam seus cabelos de água em trechos do rio Itabapoana repletos de pedras. Naquele paraíso perdido, jovens bonjesuenses, em corriola, saboreavam as laranjas, ingás-doces, abricós, araçás, jenipapos, pitangas, tamarindos, amoras e cajus recém - colhidos das árvores em derredor. Às vezes, eles tiravam da mochila um litro de Martini para acompanhar o banquete. Quase sempre, os rapazes iam com suas namoradas. A exceção, era grupo de meninas ou de meninos com seus amigos. Havia um companheirismo forte e uma grande amizade, copiando o consagrado estilo dos três mosqueteiros: “Um por todos e todos por um”.

Naquela época discutiam-se, em conjunto, temas políticos incentivados pelos festivais de música, quando “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, “Construção”, “Apesar de Você”, “Viola Enluarada” e “Deus Lhe Pague” faziam a cabeça dos jovens, tratados, então, como subversivos. Grandes nomes da música popular brasileira os inspiravam: Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Edu Lobo, Caetano Veloso e tantos outros. Depois amordaçaram a juventude, fecharam as federações de estudantes, proibiram as canções e lacraram as esperanças. E o Brasil chegou aonde chegou: jovens matando, roubando e cheirando coca, trocando a vida pelo vício.  

Não mais a juventude perdida e o perfume dos resedás - amarelos; das mangas colhidas dos galhos e das trilhas de terra batida; nem os casebres humildes que ladeavam a estrada, com seus crochês coloridos, fogão a lenha, enfeites de conta de lágrima, cuias de cabaça e gente hospitaleira. Infelizmente o passado não volta e carregou com ele a simplicidade de dias felizes em meio à natureza saboreando, tranquilamente, uma carambola bem madurinha