domingo, 3 de março de 2013

O NORTE FLUMINENSE - 09-2007


CHOREI LARGADO 
                                                              Neumar Monteiro 

                                   Contemplar, nos dias hoje, a vista panorâmica de Bom Jesus do Itabapoana não é relembrar a mesma cidade que se conhecia na infância: as encostas, os vales e os morros que na época eram ainda desabitados, uma pureza quase impossível de recordar devido o crescimento desordenado e as construções que vemos hoje. A mera ideia de que esse paraíso perdido nos tenha legado tantas paisagens belas, que pudemos apreciar, causa-nos uma espécie de arrebatamento.
                                   Aqui, no ponto em que a melancolia se mistura ao prazer, é que percebemos as descontinuidades que só são perceptíveis para aqueles que conhecem muito bem a sua cidade: o vento que traz a chuva, o sol que prenuncia um verão muito quente e a aragem que leva embora o calor para além do Itabapoana. Do alto do morro do calvário se avista a cidade qual colcha de retalhos com suas calçadas, vielas apertadas, becos sem saída, ruas ajardinadas e o corte molhado do rio que rasga em duas cidades a continuidade do asfalto.
                                   O que procuramos descrever não é a Bom Jesus de ontem, mas as recordações que vemos refletidas, as que observamos e partilhamos em comunidade. É relembrar o antigo calvário tão pequeno de estrutura, porém rico em história, aonde se ia rezar para que caísse chuva nos meses de estio. A procissão saía piedosamente da Igreja Matriz com seus terços, andores e cantorias sacras subindo o morro em marcha compassada. Na maioria das vezes a volta da procissão acontecia debaixo de chuva. Havia ali perto uma velha senhora que cerzia meias e vendia ovos de roça, que tirava um a um de uma cesta envernizada como se joias fossem. Sob o abrigo da sua varanda esperávamos que a chuva parasse.
                                   Atualmente o calvário virou outro calvário, moderno, espaçoso, mas sem sentimento, sem história, sem o afã religioso de outros tempos. Obra moderna, sem demérito de nossa parte, mais longe de tocar as cordas sensíveis do coração. Um monumento turístico, nunca um marco de devoção - engessado às duas estruturas laterais por uma viga de concreto como dois braços imobilizados - impedidos, assim, de abençoar o povo. Pelo menos o espaço interno, encimado pela cúpula ovalada, deveria ficar à vista e não encoberto pela trave de cimento conforme ficou. A descaracterização foi totalmente inoportuna, uma mácula no típico modelo franciscano, com traços tendentes do barroco e sobrevivência, nos arcos, do renascentista.
Só na lembrança permanece a relva dançante sob o  vento; os pés de manacás, araçás, aloés e capins-cidreiras de décadas passadas. Outro tempo engolido pela modernidade, como tudo que acaba deixando um lastro de saudade.

 

 

 

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